domingo, 18 de setembro de 2016

Anatomia de um monumental falhanço


Originalmente publicado no Expresso em 14.09.2016

Os dogmas existem para serem discutidos. E hoje vamos pegar num: o Banco Central Europeu é competente. Ser competente, vamos admitir, é cumprir adequadamente a sua função, isto é, os objectivos que lhe são fixados pelos Tratados.
Se o referencial aceite for este a resposta é rápida: o BCE tem sido completamente incompetente na gestão da moeda única nos últimos anos e nada aponta para que essa realidade venha a mudar.
Desde logo, o BCE (e, vamos convir, a generalidade dos agentes políticos e económicos, jornalistas e, o que é um nadinha mais grave, académicos) não percebe – ou não quer perceber, porque a Alemanha não o aceita - qual é o mandato que lhe está fixado.
Alega-se que o Banco tem como objectivo único manter a inflação próxima mas abaixo dos 2%, isto é, estabilidade de preços e que qualquer outro objectivo lhe está vedado. Nada mais errado, como uma leitura dos Tratados permite perceber.
Desde logo, o BCE não tem um mandato único: tem um mandato primário (na redacção inglesa dos Tratados) ou primordial, na discutível versão portuguesa. Primordial, ou primário indicam, desde logo, que é um, e o principal, mas não o único.
Basta ler o Artigo 127.º n.º 1 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia até ao fim e não de forma truncada. O que o tratado diz é que, desde que não se comprometa o objectivo de estabilidade de preços (no médio e longo prazo, acrescentamos nós) o BCE tem como mandato, não como opção que livremente exercerá, mas como uma obrigação que sobre ele impende, contribuir para a prossecução dos fins da União fixados no Artigo 3.º do Tratado da União Europeia. Aí se compreende um mandato amplo que inclui, entre outros, ter como “meta o pleno emprego e o progresso social”, fomentar o “combate [à] exclusão social e [à]s discriminações e promove[r] a justiça e a protecção sociais”.
Mas vamos ser generosos: vamos supor que o mandato do BCE é a versão minimalista que o mesmo entende aplicar-se. Como estamos de cumprimentos do objectivo de uma inflação próxima, mas abaixo, dos 2%? Mal.
No remanso de agosto o próprio BCE publicou na sua Working Paper Series um artigo intitulado “Anchoring of inflation expectations in the euro area: recent evidence based on survey data”.
Dele resultam três coisas simples: O BCE tem falhado sistematicamente as suas previsões para a inflação a um e dois anos, e sempre por excesso; o próprio BCE já admite que, mesmo na sua perspectiva optimista, o cumprimento do mandato de inflação próxima mais abaixo dos 2% não ocorrerá antes de 2018 e, pasme-se, este quadro prejudica a credibilidade do próprio BCE junto dos agentes económicos que vão dando sinais de estarem a “desancorar” as suas perspectivas sobre inflação das projecções do BCE.
Ora um Banco Central que não consegue gerir expectativas de inflação a médio longo prazo deixa de ser capaz de executar uma política monetária.
Se isto não é ser incompetente, então não há incompetentes.
PS – As opiniões aqui expressas são, como é usual, a título estritamente pessoal.